Magistrados que atuam nas Varas da Infância e Juventude relatam histórias emocionantes - Imprensa - Poder Judiciário de Santa Catarina
- Especial Ceij: ECA 30 anos
Nestes anos de profissão qual foi a história mais marcante - envolvendo criança e adolescente - que o (a) senhor (a) acompanhou? Onze magistrados com atuação nas Varas da Infância e Juventude de Santa Catarina foram convidados a responder essa pergunta e a falar sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente que completou 30 anos ontem, segunda-feira (13/7).
Confira, abaixo, as manifestações dos magistrados para a série especial dos 30 anos do ECA, de iniciativa da Coordenaria Estadual da Infância e Juventude (Ceij), do Poder Judiciário de Santa Catarina:
Ana Cristina Borba Alves, juíza na comarca de São José:
Na área da adoção, lembro de duas histórias marcantes: a do jovem Nelson Matheus, hoje Embaixador da Educação em Santa Catarina, e a do Francisco, que adotou quatro crianças, de 6, 8,9 e 10 anos, e um adolescente de 14 anos. Na área da socioeducação tem o caso da demolição do São Lucas (antigo Centro de Internação de Adolescentes), praticamente uma masmorra e palco de diversas barbáries. Foi uma luta conjunta, de diversos parceiros da área, e talvez o processo mais conturbado desses meus 22 anos de magistratura. A demolição representava uma tentativa de concretizar uma outra forma de socioeducação na grande Florianópolis.
Na grafia, o Estatuto da Criança e do Adolescente é um dos mais avançados do mundo. Um Estatuto de vanguarda em sua concepção. Porém, infelizmente, nunca foi implementado em sua plenitude. Ele carrega consigo políticas públicas excelentes para o resgate de nossas crianças, adolescentes e suas famílias - políticas que precisam ser concretizadas para colhermos seus frutos.
Brigitte Remor de Souza May, juíza na comarca da Capital:
Lembro de muitas histórias. Uma delas é de uma adolescente que ficou em casa de acolhimento e, quando saiu, conseguiu trabalho, se organizou e obteve a guarda do irmão menor, que também estava acolhido. Lembro de adolescentes que responderam a atos infracionais e que mais tarde foram ao Fórum para mostrar a carteira de trabalho assinada, os cadernos de estudos, os agradecimentos de familiares. Adolescentes acolhidos, felizes com trabalho e vida construída. Lembro de famílias maravilhosas que adotaram crianças, adotaram adolescentes e também grupos de irmãos, exemplos de puro amor. São histórias de crianças e adolescentes que só precisam de uma oportunidade para construir suas vidas.
O ECA é uma lei civilizatória, traz para o campo da infância e juventude os direitos humanos reconhecidos de todas as pessoas. Ao mesmo tempo, infelizmente, é ainda um grande desconhecido. O Estatuto convoca a família, a sociedade e o Estado para atuar de forma conjunta na questão da infância e juventude. Traz políticas públicas e define responsabilidades. Estabelece um sistema diferenciado de responsabilização do adolescente por atos infracionais (equivalente a crimes para adultos) já a partir dos 12 anos de idade. Traz princípios fundamentais que regulam todas as questões envolvendo crianças e adolescentes. Ele é tão importante que outras legislações posteriores vieram na mesma linha, como, por exemplo, o Estatuto do Idoso, a Lei Maria da Penha, o Estatuto da Juventude, etc.
Daniela Fernandes Dias Morelli, juíza na comarca de Jaraguá do Sul:
Muitos casos me marcaram. Um, no entanto, me tocou especialmente: o caso de um adolescente infrator internado no Centro de Atendimento Socioeducativo Provisório (CASEP) de Xanxerê. Ele tinha uma família totalmente disfuncional. Quando da progressão da medida, conseguimos colocá-lo no mercado de trabalho, alugamos um cômodo para ele morar, conseguimos doações de comida. Tempos depois, quando ele casou, ajudamos a construir sua casa, onde ele pode recomeçar a vida ao lado da nova família.
O ECA representa um marco legislativo ao reconhecer crianças e adolescentes como sujeitos de direitos, destinatários de proteção pelo Estado, pela sociedade e pela família, como já consagrado em nossa Carta Magna em seu artigo 227, de forma prioritária.
Elaine Cristina de Souza Freitas, juíza na comarca de Laguna:
Dentre várias histórias marcantes, posso citar a audiência para devolução de um menino de 9 anos de uma guarda provisória conferida aos pretensos pais adotivos. Ainda que tenhamos feito todo o processo de conhecimento e aproximação da melhor forma, foram em vão as tentativas de manter a criança na família adotiva. A mãe se arrependeu do pedido de adoção e a rejeição foi tamanha que impossibilitou a formalização da adoção. Uma criança sofrida, que passou por abusos de todos os tipos na infância, que teve seus pais destituídos quando já tinha 8 anos de idade e estava, na minha frente, sendo rejeitada mais uma vez. Essa foi uma das audiências mais tristes, diante da sensação de impotência do juízo. A criança retornou ao abrigo.
Entendo o Estatuto da Criança e do Adolescente como uma ferramenta a ser utilizada pelos profissionais que atuam na área, como forma de prevenção e proteção, a impedir a violação dos direitos das crianças e adolescentes e, quando estes já tiverem sido violados, que sejam minimizados ao máximo os seus efeitos.
Evandro Rizzo, juiz na comarca de Sombrio:
Todas os processos de adoção são especiais, mas um me marcou. Depois de uma tentativa frustrada de adoção à brasileira, a criança, que havia nascido prematura e estava internada na UTI infantil da cidade com quadro delicado, foi institucionalizada. Logo em seguida, a fim de possibilitar a troca de carinho entre o infante e os pretendentes à adoção, chamamos o casal habilitado no cadastro para uma audiência, na qual seriam expostas as peculiaridades do caso e os riscos de sequelas na criança em razão do nascimento a destempo e o histórico de drogadição da genitora. Não obstante o cenário, o casal, após receber o relatório do caso e questionado se queria fazer aproximação com a criança, respondeu: "meu filho, estávamos te esperando há tanto tempo". Algum tempo depois, eu já estava em outra comarca do Estado, a assistente social daquele caso me contatou e disse que a família havia estado no Fórum para conversar comigo e agradecer. Por todas as lições aprendidas naquele caso, deixo aqui registrado meu agradecimento, uma vez que não pude fazê-lo pessoalmente.
O Estatuto da Criança e Adolescente é um diploma à frente do seu tempo. Ele traz institutos relevantes de intervenção para a proteção e a socioeducação das nossas crianças e adolescentes. Devemos reconhecer os grandes avanços que tivemos a partir da vigência da legislação de proteção. Depoimento especial, cadastro nacional de adoção, Justiça Restaurativa, programas de execução de medidas socioeducativas, direito fundamental de profissionalização - Novos Caminhos, são alguns dos exemplos da modificação de abordagem que os paradigmas do Estatuto trouxeram. Apesar do tempo de vigência desse jovem e sóbrio senhor, ainda estamos longe da implementação de todas as suas diretrizes pelo Poder Público. Não obstante, o Poder Judiciário de Santa Catarina tem participado efetivamente da construção de pontes que façam valer os primados da proteção integral.
Fernando Carboni, juiz na comarca de Itajaí:
O caso mais marcante foi o da entrega espontânea de um bebê recém-nascido com cardiopatia grave, o qual foi imediatamente encaminhado à UTI de um hospital de Joinville. O estabelecimento de saúde enviou vários ofícios ao juízo, informando que a cardiopatia era muito grave, com alto risco de morte, mas em caso de sobrevivência, ao receber alta da UTI, haveria necessidade de um acompanhante 24h por dia. Após a recusa do primeiro casal do cadastro de adoção, o segundo aceitou imediatamente, sequer perguntou a cor da pele, e foi ao hospital fazer o acompanhamento, o que tornou a recuperação muito mais rápida, surpreendendo até mesmo os médicos.
O Estatuto da Criança e do Adolescente é uma legislação bem avançada, em consonância com a Constituição de 1988 e com a Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989. De qualquer forma, é sempre possível avançar ainda mais.
Giancarlo Bremer Nones, juiz na comarca de Criciúma:
Havia na cidade um adolescente envolvido com diversos atos infracionais, praticados com violência, inclusive. Cumpriu medidas socioeducativas de internação e semiliberdade. Certo dia, ele fugiu e foi morar com o pai em outro Estado. Arrependido, o adolescente entrou em contato com a coordenadora do programa para que ela viesse conversar comigo para saber se, no caso dele voltar, seria determinado o retorno para a medida de internação. Disse que era para ele voltar, que depois nós conversaríamos. O adolescente regressou, realizamos a justificação e mantivemos a semiliberdade. Ele concluiu a medida e não tive mais notícias dele. Tempos depois, este adolescente me abordou na porta de um supermercado, me chamou pelo nome e me cumprimentou. Com um sorriso, disse que estava trabalhando com carteira assinada e me agradeceu pela oportunidade. Nesse dia, senti que vale a pena acreditar sempre, que vale a pena confiar, que vale a pena ouvir e dialogar. Na infância, as melhores respostas são aquelas que construímos juntos.
O ECA é uma legislação de vanguarda que reconhece e garante não apenas os direitos fundamentais básicos para que crianças e adolescentes possam crescer e se desenvolver em sua plenitude, como também o seu papel enquanto atores sociais, aptos a participarem ativamente nos processos de mudança social e de construção da democracia.
Joana Ribeiro, juíza na comarca de Tijucas:
A minha melhor lembrança é a de uma mãe adotiva que aceitou aprender a amamentar o bebê. Ela foi ao pediatra e tomou a medicação recomendada, ensinamos a usar a sonda de leite artificial nas primeiras sugadas e, em pouco tempo, ela estava amamentando seu filho, sem a ajuda do leite de fórmula. Tirei fotos, comemoramos, choramos de alegria e mãe e filho puderam viver a maravilha da amamentação como nutrição, saúde e intensa construção do apego seguro.
Tenho incrível admiração pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e pelo Direito da Criança e do Adolescente que ele criou, que deu concretude aos direitos fundamentais e prioritários assegurados pela Constituição Federal de 1988 e pela Doutrina da Proteção Integral.
Raphael Mendes Barbosa, juiz na comarca de Trombudo Central:
A história que mais me marcou foi a de um menino, com aproximadamente um ano de idade e sem um dos braços que, momentos antes de ser acolhido, foi jogado para o alto pelo pai, que era perseguido pela PM. O policial o pegou no ar. Pai e mãe eram dependentes químicos. Depois a criança foi acolhida e adotada em pouco tempo. Atualmente recebe muito carinho e amor dos pais e está com seus direitos resguardados.
O ECA é uma legislação avançada e que permite assegurar a proteção integral às crianças e aos adolescentes.
Rodrigo Tavares, juiz-corregedor:
Eu presenciei várias histórias marcantes, sobretudo as ligadas a parte protetiva, pois já deferi mais de 150 adoções. Mas me recordo de uma em especial pois é uma lição da força da fé e do amor. Ao chegar numa comarca, durante a inspeção, fui apresentado a um grupo de irmãos, sendo dois meninos e uma menina com diagnóstico de dislexia, com extrema dificuldade na fala e nas atividades escolares. Antes mesmo de saber o histórico das crianças, fui abordado por uma delas com um pedido de que queria uma nova família mas tinha que ser bem longe, pois tinha muito medo do genitor. Descobri o histórico e fui informado de que as crianças tinham sido destituídas do poder familiar há alguns meses e que tinham pânico do genitor, já que ele as tinha trancado em casa e ateado fogo na residência, com intenção de matá-las. Perguntei à assistente social forense sobre os encaminhamentos para a adoção e ela disse que não havia interessados nacionais ou internacionais no perfil etário das crianças. Pedi para que fosse dada continuidade às buscas, inclusive realizado um novo contato com a Comissão Judiciária de Adoção (CEJA). Passado um tempo, a assistente social me procurou radiante para contar a novidade: muito embora infrutíferas as pesquisas anteriores, tinha um casal estrangeiro que estava desejando conhecer as crianças pois estavam pensando em alterar o perfil para adotar crianças maiores. Começamos os encontros por Skype e, apesar do começo tímido, aos poucos as crianças foram se soltando. Realizados alguns encontros, o casal disse que estava vindo ao Brasil pois tinham decidido adotar as crianças. No dia do primeiro encontro, pude perceber que o casal estava encantado com os meninos e um pouco mais distante e preocupado com a menina, sobretudo com o diagnóstico de dislexia. No fim da primeira semana de encontros, foi deferida a guarda provisória e iniciado o estágio de convivência. Após o estudo social favorável, foi designada audiência para a prolação da sentença de adoção, onde seriam determinados diversos procedimentos para que as crianças pudessem ir para o novo país. No dia da audiência, já notei a diferença das crianças: estavam alegres e falando o idioma dos pais. Mas o que mais chamou a atenção foi como o casal estava apegado com a menina, que se mostrava feliz e tranquila. Aos poucos recebi notícias, mesmo após a saída da comarca, sendo que as crianças se adaptaram muito bem aos pais e no novo país. Os meninos estavam bem na escola e eram o destaque do time de futebol da comunidade. E a menina, com amor, incentivo e paciência, passou a ter um excelente desempenho na escola e na nova língua, tendo inclusive sido descartado o diagnóstico de dislexia. Esse foi o milagre que pude presenciar, para sempre acreditar na força da fé e do amor.
O Estatuto da Criança da Criança e do Adolescente é uma lei extremamente avançada e com diversos institutos fundamentais para a garantia e proteção do melhor interesse da criança e do adolescente. A grande celeuma dos problemas atinentes a aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente não guarda correlação com a norma em si, mas a forma como ela é compreendida e aplicada. Muito embora sob a égide da doutrina da proteção integral, a criança e o adolescente ainda são vistos como um objeto e não sujeitos de direitos. Infelizmente, muitos ainda fazem uma leitura do ECA com as premissas do Código de Menores, levando a deturpações tanto na área protetiva quanto na infracional.
Simone Faria Locks, juíza na comarca de Blumenau:
O momento mais marcante da minha carreira foi a devolução de um menino de 6 anos de idade por um casal adotante, porque a criança jogou um sapato para acertar a mãe pretendente e, também, porque vieram reclamações corriqueiras da escola a respeito do comportamento da criança. Uma imagem que nunca sai da minha memória é esse menino entrando no carro para voltar para a instituição de acolhimento.
O Estatuto da Criança e do Adolescente é um marco no sentido de a criança e o adolescente serem considerados como sujeitos de direitos, embora ainda sejam necessárias tarefas/ações para o aperfeiçoamento do Estatuto.
Por Fernando Evangelista / Núcleo de Comunicação Institucional do PJSC
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Responsável: Ângelo Medeiros - Reg. Prof.: SC00445(JP)